ORIGINALMENTE EM: Amazon Kindle
N.A.: por estar publicado no Amazon Kindle, creio que não posso deixar por aqui por muito tempo. Esta página talvez venha a ser deletada.
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Que rufem os tambores, que soem as trombetas!
Que os anjos do céu venham à Terra chorar suas lágrimas de comoção, que o arcanjo Gabriel venha para coroar com folhas de louro a cabeça d’O Iluminado, O Onipotente, O Grande Mestre..!
O corredor do Instituto de Ciências Biomédicas estava em polvorosa: eis que vinha o Prof. Dr. Arístides Leônidas, lendário e emérito, talvez o acadêmico mais ilustre de toda a Universidade.
Raramente visto fora de seu laboratório ou da sala de aula, o Prof. Leônidas causava grande comoção ao caminhar pelos corredores com seu queixo erguido, o peito inflado como o de um pavão, o jaleco tão imaculado que faria a Virgem chorar. Carregava sempre sua maletinha com as notas de aula, que sacolejava para cá e para lá em movimentos perfeitamente pendulares.
Muitos eram os que esperneavam e brigavam por uma vaga no laboratório do Prof. Dr. Leônidas: diziam que sua equipe de pesquisadoras era la crème de la crème da ciência. Algumas fofocas se atreviam a contar que dali sairia o primeiro prêmio Nobel da Medicina ou Fisiologia para o Brasil. Para entrar na seleta equipe do laboratório, no entanto, deve-se passar primeiramente por uma entrevista com o professor Leônidas, o próprio: e dessa fase, nenhum rele mortal consegue sair ileso.
O professor era extremamente exigente. Não aceitava qualquer tipo de erro, seja lá de qual magnitude fosse. Os alunos, durante a aula, sentiam um medo mortal de levantar a mão para tirar qualquer dúvida: o silêncio era cortante, como se mil navalhas estivessem presentes no ar, preparadas para degolar a garganta daquele que se aventurasse a perguntar algo. As aulas eram sempre sofridas para os alunos de graduação, pois estes deviam permanecer como estátuas em suas cadeiras; os alunos da pós-graduação, no entanto, faltavam apenas limpar o chão que o professor pisava com a própria língua, de tanto que queriam participar da equipe do professor.
Sofrendo de TOC, transtorno obsessivo compulsivo, o professor Leônidas só conseguia começar a aula após abrir e fechar seu caderno três vezes, ler os tópicos que seriam dados em sala de aula seis vezes, polir o seu cálice de vinho nove vezes – aqui, vale uma pequena nota: o professor se recusava a beber de garrafas d’água ou do bebedouro: carregava sempre consigo uma taça de vinho, feita do cristal mais fino, para tal propósito – e, finalmente, beber seu conteúdo inteiro em doze pequenos goles.
O que está acontecendo?, Por que estão todos saindo de sala?, Aquele ali é o professor Leônidas?, perguntavam vozes curiosas no corredor. O professor emérito Leônidas vai inaugurar a nova ala do bloco de Anatomia, respondia uma outra voz, carregada de soberba – era, fatalmente, um dos componentes da equipe do célebre professor.
O temido, inabalável e altíssimo professor estava alheio a todos os discursos: havia desenvolvido em sua vida a incrível capacidade de não escutar nenhum comentário vindo de outra pessoa, fechando-se assim em seus próprios pensamentos e reflexões, que certamente eram mais importantes do que opiniões externas.
Vivia assim sua vida, dividida entre o laboratório e a sala de aula, além de algumas outras questões acadêmicas aqui e ali, como a atual situação de inaugurar novas facilidades da Universidade. Estava sempre viajando pelo Brasil e pelo mundo, colecionando prêmios e homenagens. No entanto, se você o perguntar – se conseguir transpassar a barreira impenetrável de soberba e atingir o patamar de dialogo com o dito-cujo – sobre as ruelas de Paris, as cores da Cidade do México, as sessões de Jazz em Nova Orleans, irá obter a seca e direta resposta:
-Eu estava lá à trabalho, não para ficar passeando. E você, já terminou seus afazeres? Pois está com bastante tempo para tagarelar…
Ninguém sabia se o professor tinha família. Suspeitavam que a resposta seria negativa, afinal, o mesmo passava todo o seu tempo dentro da Universidade, inclusive em datas festivas. O professor Leônidas também era conhecido por nunca dizer nada de sua vida pessoal para colegas e alunos, sendo assim uma eterna incógnita aos olhos de todos.
Enfim: voltemos ao cenário descrito anteriormente.
Estavam todos os grandes célebres do Instituto e também de outros cantos da Universidade. Até mesmo o Reitor compareceu para apertar as mãos – gélidas – de Leônidas. Todas as grandes mentes pensantes da ciência brasileira estavam concentradas no ambiente, e até mesmo uma assessoria da imprensa estava disposta ali, tomando notas e tirando fotos. Em diversos grupinhos de alunos se escutavam comentários maldosos sobre o professor; e alguns entre tais eram anotados pela imprensa.
O professor Leônidas se postou em frente a porta do novo bloco, o qual tinha em sua entrada uma enorme cópia do quadro de Rembrandt, A Lição de Anatomia do Dr. Tulp. Não dando muita bola para o quadro que ali estava, o professor levantou a mão, requisitando o silêncio de todos os presentes.
Fez-se um silêncio mortal no ambiente; até mesmo o ar-condicionado e os mosquitos presentes na sala fizeram questão de se aquietar.
Pigarreando, o professor iniciou:
-Meus caros, é com grande prazer que eu anuncio a abertura de nossa nova ala do Bloco Anatômico de nosso respeitável Instituto. Que este bloco seja um ambiente de muito estudo e prosperidade em descobertas científicas sobre esta imensa máquina orgânica que nos carrega pela vida.
Sendo aplaudido, o professor girou a chave que segurava em sua mão, dando abertura ao novo bloco. Todos que ali estavam se depararam com um corredor completamente branco e polido, com diversas salas e materiais propícios para o estudo de anatomia. Nas paredes, encontravam-se estudos anatômicos de Leonardo da Vinci, Michelangelo, cópias do quadro de van Mierevelt, entre outros.
Leônidas olhou tudo aquilo em completo horror: de sua testa, escorregou uma gota de suor, e seus bigodes tremeram, parecendo o início de um foco de terremoto.
–O que é isso? – sussurrou Leônidas ao diretor do Instituto de Ciências Biomédicas – Por que tem quadros aqui?
O diretor do Instituto sorriu, olhando para o estudo do feto de Leonardo da Vinci. Achei que iria dar um ar mais leve ao bloco de anatomia, respondeu.
O bigode de Leônidas continuou a tremelicar e mais uma gota de suor rolou de sua testa, agora vermelha.
Todos que estavam presentes na inauguração ainda mantinham o silêncio: alguns estavam roxos de segurar o fôlego, tamanha era a tensão no ambiente. Ninguém conseguia escutar o que se passava entre os dois célebres professores, mas sabiam que não era nada bom.
–Ar mais leve?! – sussurrou rispidamente. – Isto é um instituto sério, pelo amor de Deus! Os alunos aqui não devem estar preocupados com um ambiente leve, e sim um ambiente focado, direcionado. Olha quantas distrações esse corredor tem agora! Quando pediram minha opinião, eu disse: um corredor branco, limpo! Não é isto que vejo!
Distante, os alunos começaram a sentir uma rufada forte de vento: o chão pareceu tremer, como se o epicentro do terremoto que começava do bigode de Leônidas estivesse se espalhando por todo o ambiente. Os ares ficaram agitados, como se estivessem numa tempestade em alto mar. Os ouvidos mais aguçados conseguiriam distinguir as notas de Walkürenritt, ou Cavalgada das Valquírias, de Wagner: no meio de todo aquele turbilhão tecido pela tensão, rompeu-se do teto os quatro cavalheiros do Apocalipse.
Era chegada a hora do Julgamento Final.
Estressado do jeito que estava, o suor lhe rolava em baldes de sua testa: o bigode tremelicava tanto que era capaz de girar 360º e sair rodando de seu rosto. O coração batia rapidamente em seu peito, e a pele não era capaz de aguentar variadas tonalidades de vermelho. Sentindo-se asfixiado dentro das amarras que havia criado ao longo de sua vida, o grandioso e possuidor de imensurável intelecto, emérito da academia, prof. Dr. Arístides Leônidas desfaleceu ao chão, morrendo de ataque fulminante do coração antes mesmo de seu corpo rebombasse um baque surdo pelo salão.
Todos ficaram atônitos com a cena que acabaram de presenciar, e foi necessário um minuto de paralisia em conjunto antes que alguém entendesse o que tinha acabado de ocorrer. Passados esses sessenta segundos, alguém irrompeu em dezenas de decibéis:
–Vamos inaugurar o Bloco de Anatomia com o professor Arístides Leônidas!
A decisão foi aplaudida por todos os presentes, e logo surgiram candidatos para carregar o corpo do professor até a sala de aula principal do anatômico, um auditório que tinha a capacidade para vários lugares. Todos começaram a se empurrar e a se apertar para pegar os assentos na primeira fileira, que eram mais próximos da mesa de dissecção.
Ao olhar rápido e sem muito aprofundamento, alguém poderia julgar que a cena deveria ser igual ao público do Coliseu do Império Romano durante um espetáculo de gladiadores e leões.
Após algum período de (des)organização, todos os presentes encontraram um lugar para sentar, e os que chegaram tarde demais tiveram que se contentar nos assentos mais distantes do cadáver, sofrendo em lamúrias e muxoxos.
O diretor do Instituto de Ciências Biomédicas, agora com o falecido professor Arístides Leônidas, era o atual representante do Bloco de Anatomia. Montou ele uma equipe dos melhores professores da disciplina e lhes deu instruções de como começar a sessão de anatomia. Enquanto vestia o avental e as luvas, dirigiu-se para a plateia, que ansiava pelo espetáculo que se desenrolava.
-Meus caros alunos, tanto da graduação quanto da pós, e aos outros convidados honrados – disse, se referindo ao Reitor e aos membros da assessoria de imprensa – e meus caros companheiros de ofício, – disse, fazendo uma pequena reverência com a cabeça aos demais professores – dou boas-vindas a todos! Peço que mantenham a paciência e o silêncio para a condução dessa sessão de anatomia, que temos o prazer de ser com ninguém menos que o ilustríssimo Prof. Dr. Arístides Leônidas, professor emérito de nosso respeitável instituto.
Todos concordaram com a cabeça, emocionados com tamanha honra que o professor Leônidas cedia ao ser o primeiro cadáver dissecado dentro do novo bloco de anatomia.
-Peço aos alunos que observem com atenção e que tomem notas – sugeriu, e foi seguido de sons de rufar de páginas e canetas que começavam a rabiscar no papel.
Com um aceno da cabeça, fez menção para que um outro professor da mesa retirasse as roupas de Leônidas: o falecido professor ficou então nu aos olhos de todos os presentes (vale ressaltar que alguns alunos mais imaturos não puderam deixar de conter um risinho ao ver os órgãos sexuais expostos do professor).
O diretor do Instituto esticou sua mão e prontamente colocaram um bisturi afiadíssimo ali. Com uma precisão invejável e após alguns comentários dirigidos a plateia, realizou dois cortes em forma de V no peito do professor, seguindo com o corte até o umbigo. Um outro professor que estava disposto ao redor da mesa estancou o sangramento com o jaleco outrora limpíssimo de Leônidas.
-Estão vendo a angulação que eu tive ao realizar estes cortes? – mencionou o diretor, recebendo acenos positivos com a cabeça dos alunos – Agora, a retirada da pele: esta é uma etapa que requer cuidado… – o diretor enfiou o dedo dentro do tórax aberto, aplicando pressão nas extremidades para afastar a pele das entranhas – Estão vendo como estou fazendo? É preferível usar as mãos a instrumentos cirúrgicos, pois os mesmos são muito afiados e podem destruir estruturas de interesse…
Os alunos esgueiravam e esticavam seus pescoços, ansiosos para ver a cena brutal que acontecia na mesa de dissecção. Alguns poderiam até afirmar que se tratava de uma cena naturalesca e primitiva, como a cena de hienas que tentam surrupiar carcaça pertencente a outros animais.
-Agora, para se chegar aos órgãos vitais, deve-se retirar toda essa camada de gordura…
Tal tarefa foi árdua, pois Leônidas já contava com um grande acúmulo de gordura abdominal nos últimos anos de sua vida. O diretor do instituto quase que teve que sentar em cima do cadáver para conseguir retirar toda a camada adiposa: obteve o apoio dos demais professores, que lentamente iam despejando grandes placas de gordura no recipiente de descarte.
-Enfim! – exclamou o diretor, limpando o suor de sua testa devido ao tamanho esforço. – Todos conseguem ver os órgãos que aqui dentro estão?
Os presentes no auditório confirmaram: os que estavam nas fileiras mais afastadas, no entanto, continuavam reclamando de sua má-sorte.
Leônidas agora era apenas reconhecível para sua cabeça, que jazia numa expressão de grande dor e aflição. Seu tórax inteiro estava exposto aos olhares curiosos dos diversos pares de olhos que dentro do auditório se encontravam. Com um grande esforço, o diretor e o restante da equipe afastaram as grossas camadas de pele da barriga e do peito do falecido professor, revelando sua massa visceral: a cena, no entanto, era mais grotesca que a descrição da mesma.
Os órgãos pareciam pútridos, carcomidos: um químico diriam que estavam corroídos por ação de oxidação, um biólogo diria que o corpo estava sendo decomposto por dentro, um físico diria que o corpo estaria quebrando o princípio da conservação da matéria; um poeta finalmente diria que era um corpo há muito tempo morto sustentado pelos batimentos orgânicos de um coração.
Coração! Este era um órgão que jazia em estado atrofiado, asfixiado pelas próprias coronárias que ano após ano apertavam o músculo miocárdio, impedindo a oxigenação do tecido.
Os pulmões estavam tão pretos quanto os de um fumante: no entanto, nunca o prof. Leônidas havia colocado um cigarro em sua boca. O estado lastimável do tecido pulmonar era por conta do professor ter passado quase toda a sua vida dentro de laboratórios e salas de aula, sem se dar o luxo de sair por ai para caminhar e explorar as maravilhas escondidas nesse mundo.
O estômago estava cheio de úlceras devido às quantidades excessivas de café que Leônidas consumia. Além disso, as úlceras evidenciavam um pedido de ajuda que o estômago alertava ao restante do corpo por conta das eminentes e incessantes crises de ansiedade e estresse que o professor sofria. O resto do trato gastrointestinal também se encontrava cheio de feridas, úlceras e outras perturbações ocasionadas pelo estresse.
O fígado, este órgão tão atacado por indivíduos das mais variedades idades devido ao consumo excessivo de álcool e outras toxinas, estava, no entanto, tão diminuto e pequeno dentro do corpo de Leônidas que foi necessário uma busca extensiva por parte do diretor para encontrar tal órgão. Como Leônidas não bebia e nem se dava ao luxo de nenhum outro prazer terreno, o tecido hepático simplesmente fechou as portas do trabalho e foi-se esconder, desolado demais por ser esquecido pelo restante do organismo.
Descendo mais ainda, o diretor agora apontava para a plateia o sistema reprodutor e urinário do professor Leônidas: assim como o fígado, o sistema reprodutor se mostrava atrofiado, dando espaço apenas para a passagem de urina pela uretra. A próstata era tão inútil quanto os corpos cavernosos do pênis, que pareciam petrificados por inatividade.
O corpo por dentro jazia, então, em avançado estágio de podridão: sendo incapaz de continuar a lecionar os mais altos tópicos de anatomia humana, o diretor encerrou suas atividades, retirando a luva e o avental encharcados de sangue,
-Bom, meus caros – disse o diretor – Espero que a aula de hoje tenha servido para elucidar a todos como se funciona a dissecção de um cadáver. Agradeço muito ao nosso caro professor Leônidas por ter se mostrado tão útil em vida quanto em morte.
Os alunos, demais professores e outros presentes no auditório se levantaram e começaram a aplaudir o diretor: pareciam que estavam todos muito emocionados e sensibilizados com tamanha lição que acabaram de receber. Muitos desceram das cadeiras e foram cumprimentar o diretor pela excelente aula de anatomia; a assessoria de imprensa fazia fila para falar com os demais professores e com a equipe do laboratório do falecido professor.
Saíram do auditório de estudos anatômicos, deixando o cadáver exposto em cima da fria mesa de metal, com as tripas e as pernas ligeiramente caídas, balançando suavemente devido ao efeito da gravidade. Os aventais e luvas ensanguentadas estavam jogadas ao chão, e podia-se encontrar alguns pedaços de pele e músculo por ali também.
Ninguém se deu o trabalho de arrumar o salão após a aula: estavam todos engrandecendo o diretor do Instituto, que agora fornecia comentários específicos de dissecção em frente aos quadros de estudos anatômicos de Michelangelo.
Ninguém ao menos se deu o trabalho de apagar a luz.
O professor doutor Arístides Leônidas continuou ali na mesa por horas a fio, sendo apenas lembrado no dia seguinte pela equipe técnica do bloco anatômico. Por não receberem nenhum tipo de instrução de quem era que estava ali, os técnicos recolheram o corpo para procedimentos de fixação em formol. Para identificação das peças, escreveram Indigente No. 0001.
Em vida, foi muito reconhecido por seu intelecto e suas conquistas.
Em morte, morreu como qualquer outro perdido na rua, sem ter lágrimas de amores e paixões para molhar o rosto gélido pela rigidez post-mortem.
Nasce emérito,
morre indigente.
E assim terminou, então, a história de Arístides Leônidas: um homem que não foi amado e que não amou. Por não ter um coração que batia dentro de seu corpo, viveu muitos anos em condição de pura zumbificação.
Era apenas uma maquinaria orgânica.